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Advogado
e licenciado em Ciências Políticas, Raúl Alvarez (foto) dedica boa
parte de sua jornada à docência. Sua especialidade é a Teoria do Estado,
mas a partir de uma perspectiva crítica, que questiona diretamente o
direito de propriedade. Com essa bagagem começou a estudar o lixo, sua
relação com o Estado e com a propriedade. Chegou a esse tema antes do
que pela sua inquietude acadêmica, por sua militância social,
acompanhando uma organização territorial de José León Suárez, a área
onde se localiza um dos aterros sanitários da Ceamse. O produto dessa
pesquisa foi uma dissertação de mestrado que depois se tornou o livro
“La basura es lo más rico que hay” (Dunken), recentemente publicado.
Eis a entrevista.
Como começou a pesquisa em que se baseia o seu livro “La basura es ló más rico que hay”?
Eu comecei no ano de 2005, como advogado, como
militante, e fiquei cativado pelo assunto do lixo. Nesse momento, estava
colaborando com a organização territorial Oito de Maio, que está diante
do aterro da Ceamse, em José León Suárez. Eles estavam numa situação de
conflito com a Ceamse, que havia proposto a instalação de um projeto de
separação do lixo. Nesse momento, possuem uma grande desconfiança, pois
apontam a Ceamse como o órgão estatal encarregado da repressão nestes
lugares, era o inimigo. Eu os acompanhei e comecei a estudar para ver
como redigir o convênio. Formulamos um projeto alternativo de convênio, e
quando o propusemos à Ceamse, ela se negou sistematicamente em aceitar a
cláusula em que se comprometeria a entregar o lixo proveniente dos
geradores industriais. Então, eu me perguntei, “se é lixo, qual é o
problema? Se eles vão aterrá-lo, por que não querem entregá-lo?” E isto é
o que motiva a pesquisa.
Qual a relação entre o lixo e a estrutura da sociedade que o gera?
Uma sociedade que está dividida em classes sociais
pela maior apropriação dos meios materiais, entre os que têm e os que
não têm, é uma estrutura social que se replica invertida no terreno do
lixo. A função do manejo do lixo é resguardar que aqueles que possuem
maior propriedade de bens privados continuem conservando esta posição
preferencial, inclusive no terreno daquilo que tem valor negativo.
Então, se algo tem um valor negativo de mercado ou seu potencial de
contaminação torna-lhe negativo, a estrutura social capitalista
encaminha isto para o coletivo social. Assim como a sociedade se divide
entre proprietários e não proprietários, entre exploradores e
explorados, divide-se também entre poluidores e poluídos, entre
“lixeiradores” e “lixeirados”. Então, parece-me que o assunto do lixo
apresenta, no terreno negativo do valor, a mesma lógica de diferença
classista que existe no terreno positivo do valor. Isto me permite
reconectar a teoria do lixo, do meio ambiente e da contaminação
ambiental, com a teoria crítica da propriedade, permite-me envolver com
elementos marxistas a análise da ecologia. Há toda uma corrente de
ecologia política que está tentando fazer isto.
A partir de sua investigação, que tipo de relação pode observar entre Estado, lixo e propriedade?
Há várias ideias, uma está ligada a pensar o Estado
como uma instância de dominação de classes dentro da sociedade. Agora,
como isto se manifesta no mundo do lixo? O Estado é o que absorve essas
substâncias, esses materiais perdidos para o conjunto da sociedade e, em
particular, para as empresas capitalistas. Então, o Estado funciona
socializando as perdas. Aquilo que é lucrativo, a mercadoria, fica
dentro do âmbito da propriedade privada, e o que é dano econômico ou
ambiental é transferido para a esfera pública. É socializado, sendo
deixado no meio ambiente: que é o conjunto da sociedade. Então, trata-se
de privatizar lucros e socializar as perdas.
Em relação à propriedade, o direito de propriedade é a
possibilidade que uma pessoa tem de excluir o outro do uso e gozo da
coisa. O lixo funciona exatamente ao contrário, o lixo é a possibilidade
de tornar todos os demais responsáveis por algo que traz danos. Se a
propriedade é uma relação de apropriação de um objeto, o lixo é uma
relação de desapropriação, é desligar-se e delegar ao coletivo social,
por meio do Estado, as perdas que determinados objetos produzem.
No entanto, acontece uma disputa econômica em torno do lixo.
Porque é utilizado como um recurso de poder. A
Ceamse, em particular, utiliza o lixo como um recurso para disciplinar
os atores sociais que existem aqui no terreno. Porque o lixo em si não
existe, o lixo é um fetiche, o que existe é uma quantidade de resíduos
de matérias de diferentes tipos. Embora sejam resíduos, pois não se
percebe que possuem valor em determinados níveis da sociedade, quando se
vai baixando na escala social, o que foi descartado pelo nível
superior, possui valor para os que estão abaixo. Por exemplo, uma roupa
que alguém com muito dinheiro já mandou para o lixo, serve para mim; o
mesmo acontece com outro tipo de produto, sobretudo alimentos. Então, o
lixo que se supõe que carece de valor, quando se mescla com a divisão de
classes de uma sociedade, para muitos setores sociais, sobretudo para
os marginalizados, é um recurso de vida cotidiana.
Por que a Ceamse não queria entregar determinados produtos, como os industriais?
Acredito que um dos motivos é o de proteger alguns
geradores privados. Concretamente, há empresas que produzem determinados
tipos de resíduos alimentares que não aceitam que a Ceamse os coloquem
em recuperação e, então, obriga que a mesma os enviem para o lixo.
Nisto, a Ceamse está defendendo diretamente o direito de propriedade do
gerador, direito de propriedade que já não está no uso e gozo do objeto,
mas na proibição do uso e gozo dos demais. Ou seja, assegura, por
exemplo, o direito de uma fábrica de cosméticos, propiciando que esses
produtos que são descartados sejam encaminhados diretamente para o
aterro, sem ser orientado para ninguém. Porque se os recicladores
recolocam os produtos no mercado, entrarão em competição com seus
produtos de linha. Além disso, o capital é regido pela lógica da
escassez. Então, se você for lucrar com um resíduo que eu gerei, a
lógica do capital diz “pague-me, se não eu o enterro”.
Além disso, você disse que o enterramento do lixo também está relacionado com a forma como é concebido.
Claro. O lixo funciona como uma espécie de poder
normalizador: é lixo aquilo que fica excluído da ordem, aquilo que é o
contrário do higiênico, do socialmente aceito. Então, o lixo vai para
tudo o que tem status de exclusão, e forma uma construção imaginária de
algo que se supõe infeccioso, gordurento, que adoece, que suja, que
infringe a ordem do social. Porém, tudo isto é uma construção, não
necessariamente quer dizer que o lixo possa produzir estes efeitos.
Acontece que todos nós aprendemos a nos relacionarmos com o lixo desta
maneira, todos nós internalizamos a ideia de lixo e desenvolvemos uma
construção que é o nojo.
O nojo é algo aprendido, nós não temos naturalmente
nojo do lixo. O nojo é o que permite que o fluxo do lixo continue sendo
algo rejeitado. Na medida em que há catadores que fazem do lixo seu meio
de vida, precisam superar esta fronteira, devem transgredir a linha do
nojo, necessitam desfazer a ideia de lixo, porque, caso contrário, não
poderiam abrir a sacola de lixo. Bem, ao atravessar esta fronteira, eles
estão transgredindo uma norma socialmente aceita. Então, são
castigados. São castigados com esta impregnação imaginária de que assim
como o lixo é algo anti-higiênico, que suja e que deixa doente, os que
lidam com o lixo também teriam esta mesma característica do lixo. Ou
seja, que se nossa sociedade converte objetos em lixo, também faz isto
com as pessoas que trabalham com ele.
A Ceamse é o dispositivo pelo qual isto se confirma,
pelo qual tudo isso que mereceu o status de exclusão será enterrado. A
Ceamse defende esta fronteira com vigor. Isto impede a recuperação de
resíduos. Isto é um preconceito cultural, de ideia normalizadora do
lixo, que impede o avanço na reciclagem. Caso se pense que isso é algo
que somente suja, infecta e adoece, não se pode transformá-lo em
materiais para reciclar. Caso não se recue da ideia que existe de lixo,
não é possível mudar a conduta que temos como consumidores quando
compramos, nem quando dispomos o lixo em nossa casa, nem quando o
colocamos na rua.
Diferente do restante dos bairros do conurbado, que
também conta com aterros sanitários da Ceamse, em José León Suárez não
existe uma significativa contestação da vizinhança por questões
ambientais. O aterro Norte III é o único com um contingente numeroso de
catadores que diariamente acorrem ao lixão. Como acontece esta situação,
em que a relação com o lixo não é de rejeição, mas de aceitação?
José León tem essa particularidade, é o único
território da província de Buenos Aires em que não rejeitam o lixo, mas,
pelo contrário, faz do lixo seu recurso. É uma população de origem
social marginalizada, que vive do lixo. Todo este setor social quer
continuar tendo acesso aos seus meios de trabalho, e todo o conflito
acontece justamente para se ter acesso ao lixo, pois o problema
existente é que a Ceamse regula, segura, controla e retira-lhes o acesso
ao lixo, utilizando-o como um critério de prêmios e castigos. Àqueles
que são mais conciliadores, concedem o melhor lixo, e aos menos
conciliadores dão-lhes o pior. Aí, então, está o motivo de conflito. Em
outros lugares predomina o conflito ambiental. Aqui, ao contrário, a
pobreza tem tal nível que não permite perceber isso. Quando entrevistei o
médico do centro de saúde da região, disse-me: “estão doentes, mas não
se dão conta, porque são tão pobres que não examinam”. Então, a
diferença é que em Villa Dominico, González Catán e Punta Lara, em
primeiro lugar, surgem as reivindicações ambientais. Aqui, a
reivindicação ambiental não apareceu, o que predomina é o conflito
social em torno da apropriação do lixo. Em León Suárez o lixo é
considerado um recurso, por isso os catadores lutam para terem o mais
livremente possível acesso a esse material.
Em 2004 desaparece Diego Duarte (um jovem catador) no
aterro sanitário de José León Suárez. A partir deste fato e da situação
de conflito que foi gerada, a Ceamse inicia uma experiência inédita: as
instalações sociais de reciclagem, que propicia a participação de
várias organizações territoriais da região. Desde então, como se
desenvolveu este empreendimento?
Desde 2004, foi ocorrendo uma mudança de tática da
Ceamse, não de estratégia. A Ceamse é uma instituição criada pela
ditadura, que tem sua marca de origem. Seu objetivo é enterrar resíduos,
o que eles sabem fazer é enterrar lixo, existem para isso e querem
avançar nesse sentido, e custa-lhes para aceitar toda outra modalidade
de tratamento do lixo, que não seja enterrá-lo. Em 2004, a quantidade de
catadores era muito alta, o conflito já não permitia que operassem o
aterro, porque cortavam a estrada, impediam a entrada de caminhões, os
catadores entravam clandestinamente no período noturno e estavam
trabalhando todo o tempo.
Então, o presidente da Ceamse, desse momento, Carlos
Hurst, empreendeu uma dupla tática. Por um lado, manteve a vigilância
armada como uma forma de violência latente permanente, cuidando do lixo
como se fosse um tesouro. Porém, sem tirar isso, empreendeu uma tarefa
de negociação com pessoas de diferentes organizações territoriais ao
redor, propondo montar instalações de reciclagem que fossem uma fonte de
trabalho, para que ao invés das pessoas irem para o lixo, trabalhassem
no projeto. E então montou o mais importante empreendimento de
reciclagem de lixo que temos no país, porque aqui abrem a sacola de lixo
para obter o material.
As instalações de reciclagem que existem na cidade de
Buenos Aires podem ter maior volume, mas trabalham com material já
separado, ao contrário, aqui trabalham com lixo sem a separação. Então,
desta maneira foi montado este complexo de novas instalações de
reciclagens sociais que empregam em torno de 600 pessoas. São
experiências de cogestão entre o Estado e as organizações sociais. Era o
Estado que até poucos anos era o inimigo no terreno, ou seja, uma
experiência inovadora interessante porque, além disso, é uma experiência
de cogestão com uma população marginalizada. Não existe a cultura de
classe operária, que podem se organizar numa cooperativa, como nas
fábricas recuperadas, mas são pessoas que vêm de formas de trabalho
muito individuais, que não possuem mensalidade, que não tem horário, que
não tem patrão, que precisam aprender a trabalhar numa linha de
produção com horário, salário, autoridade. É um aprendizado importante o
que precisam fazer.
Porém, nestas instalações sociais de reciclagem,
apesar de ser um empreendimento tão importante em relação ao trabalho
com o lixo, a porcentagem do que é reciclado é mínima (em volta de 2% do
que entra no aterro). Por que isto acontece?
A porcentagem que será reciclada é definida pela
Ceamse, esse é o poder discricionário que existe. No momento, as
instalações não possuem mais capacidade de reciclagem. Para se reciclar
mais teria que haver mais espaços, que não necessariamente precisem ser
instalações como estas, com esteiras transportadoras iguais as dispostas
pela Ceamse, poderiam ser barracões com gente trabalhando debaixo e
nada mais, sendo muito mais barato. Esse era o projeto original dos
catadores, simplesmente que lhes sejam dado o material. Com a finalidade
de desfazer o conflito social, foi montado este polo de reciclagem, que
demorou vários anos, equilibrando afinidades e dissidências, prêmios e
castigos, entre os envolvidos na área.
Isto foi feito porque a Ceamse não pôde evitar que se
fizesse, pois foi o critério para resolver a luta dos catadores. Porém,
caso se buscasse avançar numa política ambiental de reciclagem, isto
poderia ter sido feito de forma muito mais rápida, numa dimensão muito
maior, com muito mais fluxo de material para os trabalhadores, para que
possam reciclar muito mais. De qualquer forma, esta experiência do
projeto de reciclagem gerou, entre os catadores, um ator social
organizado, por sorte, montado por esta política da Ceamse. É um efeito
não desejado, mas é um exemplo da mudança de relações de poder que as
políticas populistas produzem. Porque, neste sentido, a partir do Estado
estão baixando, verticalmente, uma medida que organiza os setores
populares, que lhes dão um lugar na produção e de luta que é muito
forte. Embora não questionem as relações capitalistas de produção, na
verdade, as relações de forças no caminho mudaram substancialmente, e o
poder de luta que existe é muito maior, sendo a experiência que fizeram
muito avançada.
O sistema de aterro está em colapso, algo que está
sendo evidenciando pelas denúncias de diferentes grupos da vizinhança e
ambientalistas que pedem o fechamento da Ceamse.
E lógico, pois aumenta o consumo e junto aumenta o
lixo, então colapsa. Além disso, isto está cruzado com o problema do
colonialismo interno que temos, porque os aterros da Ceamse, espalhados
pela província de Buenos Aires, só foi possível no contexto de uma
ditadura. Nenhum governo democrático teria aceitado ser o lixeiro de
outro distrito. Hoje, continuamos tendo isso como obstáculo. Há
territórios que estão se sacrificando para sustentar outros em seus
níveis de consumo. Parece-me que é preciso revisar isto, porque ninguém
quer o lixo do outro.
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Autor: Verônica Engler |
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